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Supercondomínios: características e desafios à luz da Lei 4.591/1964
07/02/2023

Historicamente, até a década de 50, a maioria da população residia no campo. A partir de mudanças econômicas, políticas e sociais pelas quais o país passou, aliadas ao desenvolvimento das indústrias nos centros urbanos, essa população acabou migrando para as cidades, sendo que a necessidade de ocupação e o desenvolvimento urbanístico acabaram gerando o que hoje conhecemos como condomínios edilícios. 

Essa modificação, bem como o anseio por um cenário de segurança jurídica do mercado imobiliário para crescimento dos investimentos no setor, acabou despertando no legislador a necessidade de regulamentação desse tipo de edificação, cuja natureza difere do condomínio voluntário, quando então, em 1964, foi promulgada a lei que trata do condomínio edilício e incorporação imobiliária. Destaca-se que o Código Civil de 1916 regrava o condomínio enquanto uma propriedade comum, contudo não abordava o condomínio em edifício. 

Há pelo menos 20 anos, estamos vivenciando uma explosão de condomínios ainda mais complexos do que aqueles da década de 1960, quando a lei de incorporação imobiliária surgiu. 

Hoje temos empreendimentos imobiliários que contemplam espaços de uso misto, como a conglomeração de shoppings, centros comerciais, lojas, edifícios residencial e comercial, entre outros. Esses condomínios são denominados supercondomínios. 

Neste artigo, trazemos informações sobre essa nova modalidade de condomínio, suas principais características e os desafios legais diante da legislação existente (Lei 4.591/1964 – Lei de Incorporação Imobiliária), editada em outra época e sob outro cenário. 

 

O mercado imobiliário em evolução ?  
 

A Lei Federal 4.591/1964 estabelece as regras da atividade de incorporação imobiliária. No artigo que publicamos, intitulado “Incorporação Imobiliária: da preparação à constituição, de acordo com a alteração legislativa” (https://www.rochaebarcellos.com.br/Noticia/Detalhes/89), abordamos os principais aspectos práticos da incorporação imobiliária, cuja leitura recomendamos para complementação do entendimento a ser tratado neste artigo. 

Enquanto os condomínios gerais se caracterizam por haver, ao mesmo tempo, dois ou mais direitos de propriedade sobre um bem, os condomínios edilícios são aqueles nos quais há coexistência entre partes comuns e partes exclusivas no imóvel, sendo que de início tinha finalidade única, por exemplo só residencial ou só comercial. 

Como se nota, a legislação vigente é a mesma há mais de 50 anos. Ressalvadas as alterações promovidas pela Medida Provisória 1.085/2021, convertida na Lei 14.382/2022, fato é que a lei não cuidou de evoluir a ponto de acompanhar todas as mudanças que vêm sendo implementadas. 

Por outro lado, Caio Mario da Silva Pereira, autor do anteprojeto da Lei de Incorporação, parece ter previsto a possibilidade de coexistir, em um mesmo condomínio edilício, setores com interesses distintos, já que a norma promulgada na década de 1960 contempla em seu texto situações condizentes ao que hoje se denomina supercondomínio. 

Há pelo menos duas décadas, eclodiram nas grandes metrópoles os denominados empreendimentos multiuso, compostos por áreas residenciais e comerciais, como escritórios, lojas, parques, shoppings, estacionamentos, enfim, com setores e usos distintos constituídos sob a roupagem de um único condomínio edilício. 

Se sob a ótica das construtoras e incorporadoras esse modelo propicia a melhor exploração do potencial construtivo dos terrenos e potencializa a obtenção de lucro com a alienação das unidades e serviços adjacentes, do ponto de vista dos clientes esse novo produto é igualmente interessante e vem despertando crescente demanda. 

Com efeito, concentrando o investimento, o adquirente da unidade imobiliária pode ter a seu dispor vários serviços, além de lazer e segurança, capazes de otimizar o seu tempo, bem atualmente bastante escasso. 

Isto porque, nesse modelo de empreendimento, pode-se ter “dentro de casa” itens de conveniência como lojas, padaria, mercado, farmácia, salão de beleza, restaurante, clube e outros de uso e consumo diário capazes de manter a rotina familiar no próprio condomínio, fomentando o consumo e, via de consequência, a própria economia daquele complexo. O benefício é enorme e atinge todos. 
 

A Lei de Incorporação Imobiliária recepciona os supercondomínios?    
 

A legislação intitula a mescla de unidades autônomas com características distintas em um único condomínio como “conjunto de edificações” (art. 8° da Lei 4.591/1964) e dispõe sobre os requisitos para se registrar esse modelo de incorporação. 

O registro da incorporação, seja para condomínio edilício simples ou misto, depende da apresentação, junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, do memorial de incorporação, composto pela documentação que se encontra elencada no art. 32 da Lei de Incorporação. 

O regramento do supercondomínio é feito por meio da convenção condominial, que conterá os direitos e deveres de todo o condomínio e os específicos de cada sub-condomínio. A harmonização de interesses diversos que podem emergir entre os adquirentes das unidades de um supercondomínio é abordada no art. 9°, parágrafo 4°, da Lei de Incorporações, que dispõe que a convenção de condomínio fixará os direitos e as relações de propriedade entre os condôminos das várias edificações, podendo estipular formas pelas quais se possam desmembrar e alienar as porções de terreno, inclusive as edificadas. 

A Lei também trata, no art. 31-A, parágrafos 9° e 10°, da possibilidade de adoção plural e separada do patrimônio de afetação em uma mesma incorporação, desde que haja previsão expressa no memorial de incorporação. 

Como nesses tipos de empreendimento a conclusão das obras se dá em momento posterior, o art. 44 da Lei de Incorporações traz a obrigação ao incorporador de, após a concessão do habite-se, averbar a construção das edificações na matrícula do terreno, em correspondência às frações ideais discriminadas, para efeito de individualização das unidades, sob pena de responder por perdas e danos perante os adquirentes. 

Portanto, embora de forma rasa, a Lei 4.591/1964 prevê a possibilidade de coexistir, em um condomínio, um conjunto de edificações com naturezas distintas entre si, com (i) memorial de incorporação e convenção de condomínio com as necessárias especificidades, fixando direitos, obrigações e as relações dos condôminos, segundo os usos e destinações distintas dadas às respectivas unidades adquiridas, (ii) possibilidade de adoção plural e separada do patrimônio de afetação, e (iii) obrigação do incorporador de averbar a construção, ainda que parcial, assim que emitido o habite-se pelo ente municipal. Esse conjunto de normas, como visto, sustenta os supercondomínios. 

Sob a ótica do incorporador, para viabilizar a construção de um empreendimento multiuso, cabe obter a aprovação do projeto integral e em um ato único, perante os órgãos públicos. Aprovado o projeto, parte-se para a elaboração das minutas de convenção de condomínio e memorial da incorporação mista, no qual deverá conter todas as etapas do empreendimento e as respectivas previsões de usos e de lançamentos. 

Somente com esses documentos estará o empreendedor, a rigor, apto a registrar a incorporação imobiliária mista e dar início à comercialização das unidades.  

 

Fato é que, para o completo sucesso do empreendimento, que vai além da comercialização de todas as unidades construídas, outros aspectos importantes devem ser considerados. 

 

Redigindo a convenção de condomínio 
 

Dada a diversidade da natureza dos subcondomínios existentes na incorporação mista, a legislação conferiu poderes para serem tratados, na convenção de condomínio, direitos e deveres diversos dos condôminos. 

Deve ficar claro que a convenção de condomínio é a norma que vigorará naquele recinto e terá força de lei para regular todos os aspectos do condomínio naquilo que a própria legislação for omissa. Na convenção deverá, portanto, conter todas as questões previsíveis e consideradas fundamentais para o bom andamento e a boa convivência entre condôminos. 

Por esta razão que a redação dessa convenção se mostra relevante e deve ser realizada com critérios, técnica e criatividade, levando-se em consideração diversos aspectos, tais como a localização do empreendimento, o público, os tipos de usos ali existentes e outras questões de interesse coletivo. O apoio de advogados capacitados e com expertise necessária é imprescindível, assim como o é o conhecimento de profissionais com outras formações, tais como engenheiros, arquitetos e administradores profissionais de condomínios. 

Ao considerar a diversidade de uso inerente aos supercondomínios e as suas peculiaridades, alguns aspectos da convenção de condomínio são mandatórios, a começar pela autonomia dos setores. 

Parece óbvio que, em razão do uso dos espaços, emerja nos adquirentes interesses distintos: para aqueles adquirentes de unidades residenciais, a manutenção das áreas de lazer é importante; para o setor comercial, o importante são as estruturas internas, como o hall de entrada, portaria e acesso; para os parques, o paisagismo é fator preponderante; já para os adquirentes de unidades hoteleiras, as instalações e decoração de luxo são relevantes. Assim, os dissídios são inúmeros, de modo que a previsão, na convenção, da autonomia entre os setores é fator preponderante.Nessa linha, além da convenção de condomínio geral, prevista por lei, é prudente a elaboração de capítulos específicos para cada setor dentro da convenção e de um regimento interno para cada um dos setores. Essa previsão será capaz de individualizar os subcondomínios, facilitando a administração de cada um deles isoladamente. 

 

Igual previsão deve haver em relação às assembleias condominiais. Afora a assembleia legal e global, é importante a previsão de assembleias específicas de cada subcondomínio, para regular as questões afetas àquela destinação específica — quando não guardam interesse com os demais —, bem como a eleição de síndico e subsíndico e conselho fiscal por setor. 

Pode parecer estranho tal distinção, especialmente porque a lei não prevê essa divisão expressamente. Mas, por outro lado, também não há vedação legal. Esse mecanismo, aliás, já vem sendo objeto de comentários doutrinários e análises jurisprudenciais, sendo uma realidade para os grandes empreendimentos. 

Outra questão relevante a ser prevista na convenção de condomínio é a distinção das áreas de uso comum, clássico tema de discórdia em condomínios edilícios regulares, quiçá em supercondomínios. 

Como regra, os edifícios edilícios são compostos de áreas de uso comum e áreas de uso exclusivo. Nos supercondomínios, considerando os diversos interesses já mencionados, as áreas comuns podem ser divididas em áreas comuns do condomínio em geral e em áreas comuns dos subcondomínios específicos. Por exemplo, os corredores do setor residencial é uma área comum deste, contudo não é área comum do condomínio em geral, razão pela qual seria inadequada a circulação de clientes do setor comercial neste espaço. 

Seguindo a linha de raciocínio anterior, é fundamental a prévia definição, na convenção de condomínio, de quais áreas comuns serão limitadas à utilização de setores específicos. Consequentemente, as despesas relativas ao uso e a manutenção das áreas de uso comum de cada setor devem ser custeadas pelos condôminos do respectivo subcondomínio, conforme definições e separações previstas na convenção, até porque um subcondomínio pode conter gastos distintos e/ou mais vultuosos e a divisão de acordo com as frações ideais do imóvel pode gerar descompasso financeiro. Sem prejuízo, a convenção deve prever também quais áreas comuns serão de uso de todos os setores, sendo que o rateio das despesas destas caberá a todos. 

Logo, é sugerido que se adote, na convenção de condomínio, critério diverso da regra geral, valendo-se, por exemplo, do rateio por valor ou por percentual, segundo o qual cada setor será responsável por arcar com um percentual de todo o supercondomínio. Essa definição de percentual deve ser precedida de criterioso estudo realizado pelo empreendedor, no momento da elaboração do projeto. Mas, a separação de contas é peça chave para o sucesso do empreendimento, além, claro, de evitar disputas entre os setores do complexo. 

Assim, é imprescindível avaliar o critério para definição e tal diferenciação é amparada pela legislação, que dá margem para que a divisão das despesas condominiais se dê por critério distinto da fração ideal comumente utilizada (art. 12, § 1°, da Lei 4.591/1964 e art. 1.336, inciso I, do Código Civil). 

É importante destacar que, apesar da necessária independência das administrações dos subcondomínios, os supercondomínios não deixam de ser um todo interligado e multifuncional, de modo que isso deve ser considerado nas gestões específicas.Como visto, o art. 9°, parágrafo 4°, da Lei 4591/1964 prevê a possibilidade de tratamento diferenciado para cada setor, justamente em função dos diversos e distintos interesses em pauta, devendo haver atenção ao todo. 

 
 

Considerações finais sobre os supercondomínios 
 

Demonstramos com esse artigo que os supercondomínios são uma realidade e que não há que se cogitar retração das incorporadoras em relação a esse tipo de condomínio, tendo em vista o seu recepcionamento pela legislação pertinente, ainda que esta tenha sido promulgada há mais de 50 anos. 

Contudo, esse tipo de condomínio ainda é um grande desafio, seja para os advogados especializados em direito imobiliário, seja para os demais operadores do direito, como juízes, doutrinadores e órgãos diretamente envolvidos, como as prefeituras e cartórios de registro de imóveis, por ser um instituto relativamente novo, já que surgiu no final da década de 1990. 

Em que pese haver previsão normativa que ampare esse tipo de empreendimento, a lei é superficial e não trata de questões práticas específicas e dos desafios vivenciados no cotidiano daqueles que atuam e que pretendem empreender neste segmento. 

Afora as questões legais já mencionadas e os desafios inerentes para se implementar esse tipo de condomínio sob diversos aspectos, especialmente o jurídico, a grande dificuldade enfrentada nessa modalidade é a administração. 

Como mencionado, setores distintos geram interesses, deveres e obrigações distintos, demandando muita flexibilidade, adaptação e criatividade para que a administração do condomínio seja pacificada. Sob outro viés, tais questões tendem a gerar oportunidades de negócios em diversos segmentos, especialmente para empresas especializadas em administração profissional de condomínios e para empresas de tecnologia. 

No campo urbanístico, há quem critique esse tipo de empreendimento em virtude do aumento significante do tráfego de veículos nas vias públicas e arredores, necessitando, por vezes, de obras viárias e medidas de compensação para restabelecer a mobilidade urbana, o que pode, se feito corretamente, aperfeiçoar a funcionalidade da área. 

Fato é que os supercondomínios apresentam diversas vantagens, como alta capacidade de aumentar o valor geral de vendas (VGV), melhor aproveitamento do solo, visto que a distância entre prédios é menor do que a no caso de empreendimentos isolados, possibilidade de criação de áreas de lazer e de apoio maximizadas, facilidade de acesso a diferentes serviços para os usuários, etc. 

Outro ponto que merece destaque é que os supercondomínios não precisam ter tamanho extenso, pois não é isso que os define, existindo inclusive em imóveis de pequeno porte, o que nos permite concluir que também não se trata de tipo de empreendimento que demanda, necessariamente, investimentos vultuosos. 

De toda forma, a sociedade e os negócios são dinâmicos e exigem que estejamos preparados e capacitados para lidar com as mudanças com técnica, criatividade e inovação, especialmente enquanto a Lei de Incorporações Imobiliárias não regular de forma específica o instituto, com previsões que sanem ao menos os desafios mais comuns, expostos neste artigo. 

A equipe do Rocha e Barcellos está à disposição para solucionar quaisquer dúvidas sobre supercondomínios, bem como para auxiliar em outras questões imobiliárias. 

Publicado por
Henrique Ribotta
07/02/2023